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Socialismo, Capitalismo e Materialismo



A campanha do senador Bernie Sanders pela nomeação como candidato a presidente não foi vitoriosa, mas o fato dele ter se apresentado como um “socialista democrático” novamente suscitou dúvidas sobre o socialismo na visão da Igreja Católica. Dúvidas como: “a Igreja condenou definitivamente o socialismo?”, “se sim, por quê?” e, principalmente, “o que é, afinal, o socialismo?”.

As discussões católicas sobre o socialismo normalmente começam e terminam com a célebre sentença do Papa Pio XI de que “ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista” (Quadragesimo Anno, 120). Simplesmente se supõe que o motivo desta declaração papal foram as práticas econômicas e políticas dos socialistas. Mas, na verdade, a questão é muito mais complexa do que simplesmente a condenação presumida das ideias econômicas socialistas, ou de qualquer sistema econômico distinto do capitalismo de livre mercado. Comecemos com o pano de fundo histórico necessário para a compreensão das várias declarações dos papas sobre o socialismo.

Em 1891, quando Leão XIII escreveu a encíclica Rerum Novarum, era justo dizer que os socialistas “pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar (...) para o Estado” (RN, 4). Vem daí a condenação de um movimento que se opunha ao direito à propriedade privada, e cujos ensinamentos tiveram profundas implicações negativas para a base econômica da vida familiar.

Mas, em 1931, quando foi publicada a Quadragesimo Anno, as coisas haviam mudado bastante. O socialismo havia se dividido em dois grupos, e Pio XI assim se referiu a eles: “Não menos profunda que a da economia, foi desde o tempo de Leão XIII a evolução do socialismo (...) Então podia ele dizer-se único, defendia uma doutrina bem definida e reduzida a sistema; depois se dividiu em duas facções principais, de tendências pela maior parte contrárias, e irreconciliáveis entre si, conservando, porém, ambas o princípio fundamental do socialismo primitivo, contrário à fé cristã” (QA, 111).

Um destes campos eram os comunistas soviéticos, que haviam conquistado o poder na Rússia alguns anos antes de Pio XI ser escolhido papa em 1922. Eles defendiam a “guerra de classes sem tréguas nem quartel e a completa destruição da propriedade particular”, e recorriam a ”todos os meios, ainda os mais violentos”. Eles eram os autoproclamados inimigos da “santa Igreja e do próprio Deus”. Naturalmente, nenhum católico poderia estar de acordo com tal programa, ou unir-se a tal movimento. Mas e o segundo tipo de socialismo? Assim disse o papa: “mais moderada é a outra facção, que conservou o nome de socialismo: porque não só professa abster-se da violência, mas abranda e limita de algum modo, embora não as suprima de todo, a luta de classes e a extinção da propriedade particular” (QA, 113).

A dúvida sobre se os católicos poderiam aderir a este outro tipo de socialismo surgiu naturalmente. De fato, foi a essa pergunta que Pio XI respondeu negativamente, e de forma categórica. Mas os motivos para essa resposta são mal compreendidos, pois eles têm muito pouco a ver com o programa econômico dos socialistas moderados.

Em primeiro lugar, Pio XI observa que os socialistas moderados haviam se afastado das velhas posições socialistas do século dezenove: “Dir-se-ia que o socialismo, aterrado com as consequências que o comunismo deduziu de seus próprios princípios, tende para as verdades que a tradição cristã sempre solenemente ensinou, e delas em certa maneira se aproxima; por quanto é inegável que as suas reivindicações concordam às vezes muitíssimo com as reclamações dos católicos que trabalham na reforma social” (QA, 113).

E ele prossegue dizendo que, se os socialistas moderados continuarem a rejeitar a luta de classes e a sua oposição à propriedade privada dos meios de produção, “por este caminho podem os princípios deste socialismo mitigado vir pouco a pouco a coincidir com os votos e reclamações dos que procuram reformar a sociedade segundo os princípios cristãos. Estes com razão pretendem que certos gêneros de bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio que trazem consigo é tal, que, sem perigo do mesmo Estado, não pode deixar-se em mãos dos particulares. Tão justos desejos e reivindicações em nada se opõem à verdade cristã, e muito menos são exclusivos do socialismo. Por isso quem só por eles luta, não tem razão para declarar-se socialista” (QA, 114-115).

Em outras palavras, embora Pio XI faça constantes ressalvas ao programa econômico do socialismo moderado, não foi esta a razão de tê-lo condenado de forma peremptória. A condenação foi por outro motivo: a compreensão materialista da sociedade, que está necessariamente por trás das políticas públicas socialistas. O socialismo “concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã” (QA, 117).

Segundo tal concepção, a sociedade existe única ou primordialmente para que “os homens, por amor da produção, sejam obrigados a entregar-se e sujeitar-se completamente à sociedade. Mais: estimam tanto os bens materiais, que servem à comodidade da vida, que afirmam deverem pospor-se e mesmo sacrificar-se quaisquer outros bens superiores, e em particular a liberdade, às exigências de uma produção ativíssima” (QA, 119).

Esta é a razão pela qual Pio XI pronunciou a solene sentença de que “ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista”. Mas não pelo motivo de os socialistas defenderem a propriedade estatal – algo que Pio XI declara explicitamente estar em total harmonia com a doutrina católica. Mas sim porque os socialistas elevaram o lado material da humanidade acima dos seus aspectos espirituais e intelectuais. E porque tornaram a produção de bens o propósito da existência da sociedade. O socialismo moderado é condenável porque, como todas as formas verdadeiras de socialismo, ele nunca abandonou as suas raízes materialistas, ainda que tenha aperfeiçoado as suas propostas econômicas.

Uma manifestação mais contemporânea das tendências filosóficas socialistas pode ser encontrada num panfleto chamado “O que é o socialismo?”, escrito por Erazim Kohak e publicado na década de setenta por um certo Comitê Organizador Socialista Democrático. O documento defende a propriedade dos trabalhadores, parece aceitar sem problemas a legitimidade das pequenas empresas e reivindica parentesco com “as justas demandas dos reformadores sociais cristãos”.

Mas o autor deixa perceber o seu cenário intelectual fundamental quando situa o esforço para obter maior justiça econômica dentro de uma luta cultural e filosófica mais ampla. Para ele, “a luta para a libertação dos homens explica toda a fermentação social dos tempos modernos. A sua primeira etapa foi moral: o crescente reconhecimento, que marcou o fim da era das trevas, de que os homens não precisam ser escravos dos velhos preconceitos, crenças e costumes, mas podem tomar suas próprias decisões e orientar suas próprias vidas”.

Aqui vemos novamente o antigo preconceito racionalista contra a Idade Média e a Igreja Católica. O Papa Pio XI percebeu os reais perigos do socialismo a partir de tais tentativas socialistas de explicar a vida e a realidade por oposição à revelação cristã. E esta foi a razão primária de sua famosa condenação.

Pio XI rotulou de “socialismo cultural” os esforços socialistas para propagar a sua visão filosófica. O socialismo cultural seria “um novo sistema de socialismo prático, ainda mal conhecido, mas que se vai propagando nos meios socialistas. Propõe-se ele a formação das inteligências e dos costumes; e ainda que se faça particular amigo da infância e procure aliciá-la, abraça todas as idades e condições, para formar o homem ‘socialista’ que há de constituir mais tarde a sociedade humana plasmada pelo ideal do socialismo” (QA, 121).

O historiador Hugh McLeod, no livro “Religion and the People of Western Europe, 1789-1989” descreveu assim este socialismo cultural: “É impossível entender o apelo que teve o movimento (...) sem reconhecer que os partidos socialistas foram muito mais que grupos de pressão a favor da classe trabalhadora. Como os sans-culottes de 1793, eles alegavam oferecer uma fórmula para a regeneração total da sociedade (...) Eles acreditavam que o socialismo fosse a chave para a emancipação humana, e que tudo o mais se seguiria dali. Onde o socialismo se estabeleceu no final do século dezenove, ele tendeu a formar uma rede de instituições de apoio muito similar à utilizada pela Igreja Católica para fortalecer os elos entre os fiéis e preservá-los da contaminação ‘mundana’. Ainda que fosse pequeno o número de socialistas comprometidos e informados, uma proporção muito maior da classe trabalhadora estava parcialmente envolvida na subcultura socialista, participando de debates e palestras noturnas ou de festivais dominicais para famílias socialistas”.

É muito importante reconhecer, entretanto, que, se é verdade que todos os socialistas verdadeiros são materialistas, nem todos os materialistas são socialistas. Foi o que explicou o papa João Paulo II em sua encíclica Centesimus Annus, na qual assinalou, confirmando os seus predecessores, que “o erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De fato, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico-social” (CA, 13).

Além disso, o socialismo nega ao homem a sua capacidade de livre escolha e “a sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal”. E o que está na raiz dos erros socialistas? O papa João Paulo II diz que “é necessário responder que a sua causa primeira é o ateísmo”.

Mas João Paulo II estende a sua análise para além do movimento socialista: “O referido ateísmo está, aliás, estritamente conexo com o racionalismo iluminístico, que concebe a realidade humana e social do homem de maneira mecanicista. Nega-se deste modo a intuição última sobre a verdadeira grandeza do homem, a sua transcendência relativamente ao mundo das coisas, (...) e, sobretudo, a necessidade da salvação que daí deriva” (CA, 13).

Sobre quem ele está falando aqui? É difícil discordar da constatação de que ele se refere aos formuladores originais da ciência econômica e da doutrina capitalista, tais como os fisiocratas franceses e o escocês Adam Smith. Essas doutrinas também são essencialmente ateias pois, como os socialistas, enxergam a sociedade primariamente como “produção de riqueza”. De fato, os defensores do capitalismo se vangloriam constantemente da grande quantidade de bens criados pela economia capitalista.

Parece, portanto, que João Paulo II está sugerindo que, assim como nenhum católico pode ser um socialista, também nenhum católico pode ser um capitalista, se isso pressupõe abraçar a lógica do capitalismo, a qual “coincide com ele [o marxismo] na total redução do homem à esfera do econômico e da satisfação das necessidades materiais” (CA, 19).

Mais um ponto. Num artigo escrito em 2006 para a revista First Things, intitulado “A Europa e seus descontentes”, o Papa Bento XVI assim se referiu ao socialismo: “Mas na Europa, no século dezenove, surgiu o socialismo, o qual rapidamente se dividiu em dois ramos diferentes: o totalitário e o democrático. O socialismo democrático logrou posicionar-se entre os dois modelos existentes, como um bem-vindo contrapeso às posições liberais radicais, as quais ele desenvolveu e corrigiu. Ele também logrou ter apelo entre várias denominações. Na Inglaterra, ele se tornou o partido político dos católicos, que nunca se sentiram à vontade nem entre os conservadores protestantes e nem entre os liberais. Também na Alemanha, os grupos católicos sentiam-se mais próximos do socialismo democrático do que das forças conservadoras, rigidamente prussianas e protestantes. De diversas maneiras, o socialismo democrático foi e é próximo da doutrina social católica. E quase sempre trouxe uma contribuição notável para a formação de uma consciência social”.

De certo modo, Bento XVI simplesmente repete aqui o sentimento de Pio XI, citado acima, de que “não se pode negar que os programas do socialismo moderado frequentemente se aproximam das justas demandas dos reformadores sociais cristãos”. Mas ele também alude a uma questão nova. Quando se olha para a famosa condenação do socialismo feita por Pio XI (“ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista”), é importante reparar nos dois adjetivos: ‘bom’ e ‘verdadeiro’. O sentido do primeiro é claro. Mas e o segundo? Por que ele fala de um ‘verdadeiro socialista’? Ao dizer que um bom católico não poderia ser um verdadeiro socialista, o papa Pio XI reconhecia a possibilidade de que alguns dos que se consideram socialistas não sejam socialistas verdadeiros.

Talvez o melhor exemplo disso seja o Partido Trabalhista britânico, que, como assinalou Bento XVI, “se tornou o partido político dos católicos”, embora se considerasse socialista. Mas ele não era autenticamente socialista, não em qualquer sentido condenável. Isso já havia sido assinalado em 1924 pelo Cardeal Bourne, arcebispo de Westminter, quando disse que ele “nada tem em comum com os socialistas do continente”. Por isso, devemos ir além da mera terminologia, e procurar entender o que os termos significam para as pessoas. Há muitos que enxergam os efeitos destrutivos do capitalismo de livre mercado e que, como reação, se rotulam socialistas, equivocadamente acreditando não haver outro modo pelo qual possam expressar o seu dissenso em relação ao consenso capitalista reinante. Eles ignoram ou não compreendem o distributismo, e não se dão conta de que é possível encontrar na tradição da Igreja meios muito mais efetivos de se opor aos erros e efeitos perversos da economia de livre mercado.

Se os católicos formos fiéis à herança do magistério social da Igreja, então nós combateremos todos os sistemas econômicos que, explícita ou implicitamente, elevam os bens materiais à condição de summun bonum da vida humana. Esta visão falsa e desordenada da atividade econômica não está confinada ao socialismo, mas é comum onde quer que a humanidade caída tenha abandonado o alerta salutar de nosso divino Senhor: “a vida de um homem, ainda que ele esteja na abundância, não depende de suas riquezas” (Lc 12, 15).

Por Thomas Storck. Traduzido do Distributist Review por Rogério Schmitt. (Modéstia e Pudor)

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